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O exercício do ser na poesia de Maria de Lourdes Hortas

Assim como em todos os gêneros da Literatura - romance, conto, prosa, poesia, tratados - sempre me encantou quem trata as palavras com simplicidade e com pitadas de profundidade e reflexões, sejam de situações complexas ou mesmo coisas do dia-a-dia. No caso da poesia, acredito que o rebuscamento, a dita alta intelectualidade ou os arroubos de pretensos conhecimentos afugenta o leitor ou, pelo menos, não o induz ao partilhamento das emoções. É o que preconiza o mundo de Drummond, Adélia Prado, Manuel Bandeira, Quintana; sem, no entanto, emoldorarmos aqui nomes como Ferreira Gullar, Afonso Romano de Sant’Ana eTorquato Neto, entre outros expoentes. Recentemente, com atraso me penitencio, conhecí a poesia límpida da portuguesa Maria de Lourdes Hortas. Fiquei extasiado com a beleza das colocações, de como ela burila a palavra na correnteza do que é simples, belo; mas que nem por isso deixa de ser profundo. Hortas nasceu há 82 anos, em Portugal, mais precisamente em São Vicente da Beira. Nas palavras do também poeta Juarez Correya, vivendo no Brasil desde os 10 anos de idade, Hortas continua, “na Vida e na Poesia, com a sua exemplar simplicidade e invejável humildade. Mulher, mãe, avó, amorosíssima com todos os que têm a sorte de estar ao seu lado, e humanamente solidária com aqueles que merecem o seu companheirismo e sua amizade”. No ano de 1965, lançou, com 25 anos de idade, o seu primeiro livro de poesia - Aromas da Infância(publicado em Portugal pela Edições Panorama/S.N.I. - Palácio Foz - Lisboa). O livro havia conquistado o primeiro prêmio do Concurso de Manuscritos - Poesia 1963, do S.N.I. Ainda segundo Correya, “na sua fecunda carreira literária dedicada, Hortas produziu um conjunto uniforme, todo harmonizado pela sua voz de terras e águas portuguesas e brasileiras, construído por 8 livros originalíssimos e que, mesmo tematicamente diversos, parecem ter sido escritos em um só tempo ou mesmo de uma só vez. É a vida de uma poesia inteira, como se não existissem territórios, fronteiras, rios, mares, cidades, países e continentes tão distintos, como são as suas pátrias Portugal e Brasil”. Para a doutora em Literatura Brasileira(pela Ufpb) e ex-professora da Funeso, da Ufpe e atual professora na Faculdade de Letras, Zuleide Duarte - cuja tese de doutorado versa sobre a obra de Hortas - a poetisa enfoca principalmente o “exercício do ser”. “Remontar às origens da linguagem e do sentimento naquilo que apela para nossa humanidade e resgata o sentimento pelas coisas simples, e talvez, o que nos salva do anti-sentir. O cantar a grandeza da vida menor, do cotidiano, do simples, do prosaico. A poesia de Maria de Lourdes Hortas, essencialmente lírica, vincula-se a uma tradição que vem de tão longe como a rosa-raiz do seu poema “Rosa Rosae”, do seu penúltimo livro Dança das Heras (1995): “Não haveria rosa / entre as rosas / não existisse a rosa mais antiga”. Já nesse primeiro livro delineia-se a temática que permeia seu discurso poético: a aldeia na distante península ibérica e o Recife, pátria adotiva: o sonho da impossível ubiqüidade: estar aqui e na aldeia ao mesmo tempo. Sonho alimentado de duas vidas simultâneas, vividas pelo registro da realidade e do desejo. Entre as visões da aldeia e o colorido do Recife está o mar, símbolo ambivalente de corte e religação, de dor e esperança”. Nessa perspectiva, a poesia de Maria de Lourdes Hortas apresenta-se com a mescla da modernidade em poemas onde trabalha significantes essencialmente nominais, estruturas frásicas onde o estrato ótico completa a decodificação, entre outras técnicas ditas modernas. Paralelamente, sua lírica está marcada pela influência trovadoresca em que avultam a cantiga do amigo, lamento feminino pela ausência amada, a vassalagem amorosa, em construções onde o paralelismo é o recurso técnico privilegiado, ao lado de anáforas e refrões. Equilibrando-se entre as formas consagradas pela tradição e o gosto iconoclástico da modernidade, Maria de Lourdes Hortas vem cultivando, há mais que três décadas, sua arte. Do primeiro livro para o segundo, se vão catorze anos. Mas a poetisa não parou: Exerceu atividade jornalística como colaboradora do Diário de Pernambuco, seguiu o Curso de Letras (já era advogada desde 1964), e incursionou pelo magistério. Gnhou mais um prêmio, concedido pela Associação de Cultura Luso-Brasileira de Juiz de Fora (MG) pelo texto poético “Fio de Lã” que saiu em livro no mesmo ano, numa edição do Gabinete Português de Leitura do Recife. Em 1979 publicou dois livros - Fio de Lã – poesias -, e Palavra de Mulher - antologia de poesia feminina contemporânea, publicada pela Editora Fontana (RJ). O erotismo com que se tecem as imagens desse poema estará presente na obra de Maria de Lourdes Hortas, publicada a partir da década de oitenta. “A rosa desfolhada para e pelo prazer”, inspirará a velha dicotomia amor versus dor. No livro Flauta e Gesto (1983), a mágoa floresce também e escorre pelas lágrimas da mulher/menina, da menina/mulher. A escrita de Maria de Lourdes Hortas representa, como ela própria já afirmou, a sua linguagem, sua forma de estar no mundo, a via de acesso ao exterior e ao outro. Sua luta incessante com a palavra, à maneira drummondiana, fê-la cúmplice e irremediavelmente dependente, da palavra escrita : caminho que a conduz à auto-expressão e à expressão do mundo. Recriar pela palavra é o credo desta mulher simples, que ama as flores, a chuva, a vida, e faz do seu mister um sacerdócio, cujo “Acto de Fé” encerra estas breves considerações: “Creio na alquimia da palavra / onde de um rio / raiz, seiva, resina / favo de mel silvestre / mina d’água / êxtase da infância / esperando-me na / esquina. / Ao terceiro verso / ressuscito dos mortos / enquanto lírios nascem / sereníssimos / varando a verde relva / do silêncio que respira”. Exemplos da poética de Maria de Lourdes Hortas TRANSFUSÃO Onde a vida te pôs tédio, acampo meu carrossel. Solto barcos de papel onde empoçou desalento. Em teu corredor cinzento reacendo a lamparina. Onde chora a tua sina, passo com meu realejo. Onde a vida te pôs fel, ponho ternura de beijo. CARTOLA MÁGICA Minha cartola mágica de onde tiro pombos-correios, coelhinhos brancos, lenços de várias cores para várias dores, minha cartola mágica poço fundo (transforma pedras em girassóis d’água) é muito rasa quando nela atiro meus olhos vertendo a solidão do mundo MUDANÇA Na casa nova reuno o espólio de tantas casas perdidas coisas que me espiam ao abrir caixas passado que me assalta nos livros nos retratros tempo antigo que se levanta e anda respirando urzes, rosas, barcos chuvas, serras, fontes pétalas secas de antigas florescecantigas de infância, mares e rios rostos perdidos: meus pais meus amores meus amigos - sombras que assobiam passeando por esquinas e arcos de mim.

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